ORIGEM

Este trabalho é uma experiência formal e reflexiva sobre o corpo do homem negro. Espera-se com esta iniciativa quebrar o estigma que ao longo do tempo o homem negro construiu involuntariamente, ou não; além de contribuir para a aceitação da imagem do próprio corpo masculino. É pelo próprio estigma, pela permanência e constância de ver o corpo que se pretende que a ruptura aconteça. Passa a ser banal e normal, no sentido de que a frequência e o costume em ver as imagens nos aproxima do seu conteúdo .

eu, negro, falo!!


No final dos anos 90 a revista americana The New York Times escolheu como reportagem de capa a questão do homem negro americano. Segundo a matéria a esperança de vida média dos negros é muito pequena, a taxa de desemprego é o dobro das dos homens brancos e o nível de remuneração é inferior ao das mulheres, tanto brancas quanto negras. A imagem associada ao homem negro é de violência e temor.

A fotografia da capa era a da nuca de um homem negro. A intenção era de não individualizar e, assim, o retratado não seria identificado como o representante da raça negra. Mas, a imagem acabou por revelar a própria condição do negro: o anonimato e a indiferença. Além disso, a foto poderia sugerir, por outras características, que se tratava de um cantor de rap (pela cabeça raspada), ou de um lutador (pelo pescoço maciço), e o brinco na orelha sugeria uma equivocada polivalência sexual e a violência de um pirata.

No mesmo período, o Whitney Museum of American Art, New York inaugurava a exposição Black Male: Representations of Masculinity in Contemporary American Art. Em uma das salas, havia uma contextualização histórica com textos e fotos onde o negro americano era retratado por meio da Comunidade e Liderança, dos Direitos Civis, das Empresas e Emprego, da Televisão e Mídia, do Gênero e Sexualidade. No final da exposição o público percebia como a arte é uma ferramenta essencial para interpretar as questões sociais difíceis e promover a mudança em nossa sociedade, por intermédio de uma compreensão do contexto social, consegue-se uma apreciação mais profunda da própria arte.

Não podemos esquecer que o movimento feminista promoveu uma reconceituação das identidades sociais em todo mundo. Desconstruiu-se a mulher de então, e com isso outros grupos seguiram a reboque reivindicando mais liberdade e direitos humanos, como os gays e as lésbicas. A categoria gênero surge para ressaltar a construção das diferenças e desigualdades. Não só a mulher foi construída pela dominação masculina, mas o próprio homem é produto das estruturas de gênero. O movimento feminista contribui para que o homem perceba que existem muitas formas diferentes de masculinidade que se propagam pela história e cultura.

A imagem hegemônica do homem nas sociedades ocidentais apresenta-se de forma determinada sendo adulto, branco, de classe média e heterossexual. Neste contexto o homem negro, pobre e homossexual apresenta-se de forma subalternizada, representação que funciona, entre outras coisas, como estrutura de sustentação para práticas concretas de exclusão, marginalização e violência.

O negro está preso em seu próprio corpo e em sua cor de pele, logo, antes de tudo ele é representado como um corpo negro.

A partir do olhar do outro, o homem negro se molda socialmente para ser reconhecido e construir uma identidade. O homem negro ocidental não tem possibilidade histórica de pensar sua afetividade sem ser pelo recorte da heteronormatividade. Ele é condicionado a ser mais forte e mais viril que os demais. Segundo o psicanalista Contardo Calligaris, o negro americano se socializa pelos estereótipos que os estigmatizam. Seu corpo é o patrimônio que compartilham, é a única metáfora de sua identidade. Por intermédio de estereótipos, o homem negro só pode insistentemente reafirmar sua virilidade desprezada socialmente pelo espetáculo de sua presença física e sexual. Da violência ao esporte, da fala aos gestos cotidianos, ele reclama a atenção dos brancos para a forma de virilidade que lhe sobra.

No Brasil

Os escravos, após a libertação, caíram imediatamente na miséria e servidão para dar continuidade a sua condição e permitir estarem inseridos na sociedade, ainda que de forma desigual. Mas, sua função estável, lhe permitiu não ser ignorado no extrato social.

O negro americano não se torna rico, mas a sua condição de miséria e servidão não são aceitas e instituídas socialmente, foi preciso ser estigmatizado.

Ao passar dos anos, o negro brasileiro se incorporou de um personagem e de um comportamento socialmente aceito - ginga, samba no pé etc -, e não estigmatizado. Passa a ser um patrimônio imaginário da nação. Ajudou muito a miscigenação, mas apesar de tudo, o estereótipo do negro é de pobre, malandro e ladrão.

É como afirma o antropólogo Osmundo Pinho: "Ser negro é ser o corpo negro, que emergiu simbolicamente na história como o corpo para o outro, o branco dominante. Assim, o corpo negro masculino é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho e corpo sexuado. Está, desse modo, decomposto ou fragmentado em partes: a pele; as marcas corporais da raça (cabelo, feições, odores); os músculos ou força física; o sexo, genitalizado dimorficamente como o pênis, símbolo falocrático do plus de sensualidade que o negro representaria e que, ironicamente, significa sua recondução ao reino dos fetiches animados pelo olhar branco".

Com a suposta crise do masculino, muito discutida, considerada como a inadequação do modelo masculino frente as conquistas feministas, deve o homem - presumidamente o homem heterossexual e branco - adequar-se às mudanças causadas pela emancipação da mulher. Caberia ao homem, também, compartilhar com a mulher as atividades domésticas, cuidar das crianças, criar afeto, vaidade e ser mais sensível.

Em geral, o homem, desde cedo foi educado a ser agressivo e tomar o poder, ser o melhor do seu grupo. Ser homem é ter que prová-lo o tempo todo. O desespero é que a mesma sociedade que ensina a bater o condena quando ele bate. Segundo o psicoterapeuta Sócrates Nolasco "tanto um revólver quanto um grande bíceps podem ser grandes lápides .(...) Masculinidade e violência guardam entre si laços de estranheza e complementaridade."

As mobilizações sociais pelos direitos civis das minorias e a revolução sexual dos anos 60 gradualmente foram liberando o corpo masculino ao desejo. Os próprios homens começam a cultura do cultivo a forma física, a liberdade sexual do final dos anos 60 e nos 70 torna isso ainda mais evidente. O mundo da moda não tarda a perceber isso e o processo vai ganhando força via editoriais de moda que expõem o corpo masculino.

Além de se tornar um objeto erótico ele também desperta o desejo de consumo. E nesse processo erotizante não é mais marginal, ou relegado a um grupo social, ele é evidente e pode ser percebido e consumido por todos.

Para o homem negro, jovem e pobre, existe uma crise do masculino que tem uma longa duração que é determinada pela relação das posições de gênero com a estrutura das classes, o racismo, a violência e aspectos brutalizantes e alienadores do mercado, demonstrados pelos índices alarmantes de violência e de abusos físicos no Brasil.

Sendo assim, as fotos aqui apresentadas, flagrando não-modelos que carregam em si suas próprias histórias, têm em seu contexto a representação, primordialmente, do corpo masculino negro ora sendo confrontado, nas palavras de Caetano, por "outros quase brancos tratados como pretos". As fotos retratam o fetiche, a erotização, a identidade, o cotidiano, a força, a violência e a própria mídia do corpo masculino negro, perpassados pela representação do homem numa sociedade predominantemente vista como branca e heterossexual.

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